Riachão
- Batucando
- 15 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020

Raros foram os artistas populares que espalharam contentamento como Riachão. Pra tristeza não deu bola: quando, já no fim da vida, se lamentava de dores no joelho (“lugar de malandro é em pé, sambando”, dizia) e da memória que fraquejava, com o samba resolvia esses problemas nas hora. Ainda garoto, sentiu-se provocado ao ler a frase que despertaria sua sina de cronista musical. “Se o Rio não escrever, a Bahia não canta”. Como assim? A partir daí, narrou em sambas-crônicas histórias de sua terra e de sua gente. Recebia suas músicas prontas - letra e melodia - daquele que dizia ser seu único parceiro, a quem nunca deixou de exaltar: “Deus é a música!”, costumava afirmar. O Elevador Lacerda que vive a subir e a descer. O povoado que encheu a Sé para ver o umbigão da baleia. A onça que fez aquele fuá na Ondina. Os sambas na Cantina da Lua, na companhia de Clarindo Silva e Claudete Macedo. As farras no São João e na Queima de Judas. Os pedidos ao patrão para brincar o carnaval e ir à Lavagem do Bonfim. A cachacinha e o feijão das festas de aniversário. A pitada de tabaco, a zuada do apito e a saia rôta da cabrocha. Retratos fiéis da Bahia! Mas, em meio a tanta alegria, havia espaço para falar da fome, realidade vivida na infância pobre. “Foge a alegria do homem/ vendo seus filhos com fome”, cantou em “Pobre do pobre”, pedindo a Deus para, com a morte, pôr fim ao sofrimento. Em “Barriga vazia”, volta a questionar o Criador: “Por que faz assim com a pobreza?”. Já os laços de solidariedade decorrentes da situação de penúria aparecem em “Panela no fogo” (“Dê um pulo na favela/ chame Maria da Guia/ diga que traga a criança que estiver com a barriga vazia”). O último dos malandros do samba achava graça na possibilidade de chegar ao centenário. Adorava celebrar seus aniversários com amigos e familiares e, nos últimos anos, sempre cantava um samba em que brincava com a idade: “Parabéns! Se Deus quiser, vou chegar a cem!”. Para quem dizia não pensar na morte (“não me interessa, porque meu caso é viver, é alegria”), teve um fim de vida que qualquer malandro gostaria de ter tido: dormindo, em paz. Foi morar com Deus!
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Quem via Riachão cantando suas crônicas da Velha Bahia, sambando com sua indumentária de malandro, mal poderia imaginar que seu início de carreira se daria ao ritmo de canções bem menos urbanas e sincopadas que os clássicos “Retrato da Bahia” e “Baleia da Sé”. A roça que cultivou no quintal de casa até os últimos dias de vida seria uma pista para apresentar um perfil um tanto desconhecido da trajetória artística de Clementino Rodrigues: o cantador de toadas sertanejas. Precoce na vida boêmia, aos vinte e poucos anos o malandro já era calejado dos pagodes em festas de largo e circos quando resolveu tentar a sorte na Rádio Sociedade da Bahia. Em um primeiro momento, sequer conseguiu fazer o teste, mas insistiu no propósito, sendo bem-sucedido na segunda tentativa. Riachão conta que, na ocasião, teve uma premonição: o caminho para o sucesso estaria em suas músicas sertanejas, pelas quais tinha grande apreço. “O diretor musical [Mota Neto] é paulista, cante umas toadas para ele”, teria lhe dito “o juízo” naqueles idos de 1944. E assim foi: o aspirante à artista cantou e o maestro ficou maravilhado. “Eu já corri essa Bahia toda, já ouvi não sei quantos cantores. Não tem um cantor na Bahia que tem esse jeito teu. Você nasceu na Bahia mesmo?”, duvidou. “Sou do Garcia”, respondeu o malandro. Riachão foi contratado para cantar, diariamente, às 5 da manhã, músicas sertanejas. Seu grande parceiro dessa fase foi o cantador e violonista Sabiá (Antônio Sabino Marques), a quem nutriu amizade até o fim da vida - no início da primeira década deste século, a dupla voltaria à cena, ganhando registros definitivos no álbum “Humanenochum” (2000) e no documentário “Samba Riachão” (2001). Certo dia, ao romper do sol, chegou sozinho à rádio, achando que seria demitido - o parceiro estava “terrivelmente bêbado”, sem condições de se apresentar. Constrangido, explicou a situação ao novo diretor musical, o cronista e compositor Antônio Maria. O pernambucano, porém, que já vinha observando o artista pelos corredores da rádio, nos momentos de espontaneidade, tinha outros planos para ele. “A partir de agora, você vai cantar sozinho. E samba!” Texto: André Carvalho
Ilustrações: Kelvin Koubik
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