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Clara Nunes

  • Foto do escritor: Batucando
    Batucando
  • 20 de jul. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 17 de ago. de 2020



“Quando eu vim de Minas, trouxe ouro em pó”. Os versos do samba de Xangô da Mangueira, gravados por Clara Nunes em 1973, traduziam em poucas palavras sua trajetória artística. A “Mineira Guerreira” saiu da cidade de Caetanópolis, no interior de Minas Gerais, para levar a todo o Brasil a imensa beleza contida em composições de artistas populares. Para milhões de brasileiros, trouxe “ouro em pó” em forma de música.

A vida e obra da cantora, nascida Clara Francisca Gonçalves em 12 de agosto de 1942, são um capítulo à parte na história da música popular brasileira. Superando dramas, obtendo vitórias, quebrando paradigmas e registrando para a posteridade belas melodias, Clara encantou, foi amada, idolatrada por multidões. Intensa, conheceu o sucesso em sua forma mais avassaladora. Fugaz, morreu de forma trágica, no auge, aos 40 anos de idade.

Sua biografia se fez amparada em várias escolhas acertadas, que a conduziram ao sucesso. Seria Clara Nunes um grande nome da música brasileira se tivesse interpretado somente boleros e músicas românticas, base do repertório do início de sua carreira? Conheceria os meandros do samba tão bem, e se consagraria como uma das maiores intérpretes do gênero, se não fosse conduzida pelas mãos do produtor Adelzon Alves? Sem Paulo César Pinheiro ao seu lado, teria ela diversificado o repertório, consagrando-se definitivamente como uma das maiores intérpretes da música brasileira? Seria tão adorada pelas gerações posteriores se não tivesse escolhido tão bem os compositores e registrado suas obras com tanto esmero?

De Carmen Miranda a Elizeth Cardoso

Cantar era umas das coisas que a pequena Clara mais gostava de fazer em Caetanópolis. Se tivesse ficado por lá, provavelmente, seríamos privados de conhecer seu cantar. Ainda adolescente, mudar-se-ia para Belo Horizonte, onde daria seus primeiros passos na vida artística. Sua maior influência, a cantora que mais admirava, era Elizeth Cardoso, nome de destaque na história da música brasileira, que se tornaria sua amiga com o decorrer dos anos.

Elizeth Cardoso, no entanto, apesar de reconhecido talento, não era uma grande vendedora de discos. Fato é que, desde Carmen Miranda, nenhuma cantora repetira seu grande sucesso e causara a admiração que a “Pequena Notával” havia conquistado. Clara Nunes quebraria este paradigma. Após lançar três discos sem tanto destaque, cantando boleros e músicas românticas, adaptadas de sucessos internacionais, o ano de 1971 marcou a grande virada: Clara venderia discos como água a partir daí, alcançando a incrível marca de 18 discos de ouro conquistados. O responsável pela mudança: Adelzon Alves.

Os produtores

Os primeiros discos de Clara Nunes na Odeon foram um fracasso de vendas. A imposição da direção artística da gravadora, capitaneada por Carlos Imperial, era que ela gravasse músicas românticas. Após três bolas na trave, ela bateu o pé. Queria fazer um disco cantando samba, músicas regionais, algo mais brasileiro.

Pensou em convidar Hermínio Bello de Carvalho para produzir seu novo álbum - ele já havia produzido Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, além de ter descoberto e lançado Clementina de Jesus. Clara tinha adoração por ele desde quando, chegando ao Rio de Janeiro, impressionou-se com o musical Rosa de Ouro, produzido por ele (a cantora assistiu 13 vezes ao espetáculo). Carlos Imperial, no entanto, vetou o nome de Hermínio. A solução foi convidar Adelzon Alves, que possuía um programa de samba muito popular no rádio e conhecia muito bem o universo que a cantora gostaria de explorar - e se inserir. A aposta foi mais do que acertada.

A relação de Clara com Adelzon extrapolou o campo profissional: tornaram-se namorados. Ele a levava para conhecer as principais rodas de samba da cidade, subiam os morros e percorriam a cidade toda conhecendo compositores. Nestas andanças, conheceu a Velha Guarda da Portela e Antonio Candeia Filho, duas paixões que levaria para o resto da vida. O mundo do samba se curvava a ela e, com naturalidade, ela conquistava público, crítica e gravadora. Ninguém escapava aos seus encantos. A partir daí, sua carreira decolou e Clara não obteria, nos discos seguintes, nada menos que o sucesso retumbante.

A parceria chegou ao fim quando apareceu outro personagem de fundamental importância na vida e obra de Clara: Paulo César Pinheiro. Amor que vai, amor que vem, uma nova parceria se fez, mais uma vez envolvendo a música e a vida pessoal da cantora - desta vez, porém, o fogo da paixão veio antes. Os dois logo casariam e ficariam juntos até o fim da vida de Clara.

Em 1975, após quatro discos de grande sucesso produzidos por Adelzon Alves, Clara Nunes lançou “Claridade”. À princípio, Paulo César Pinheiro não assumiu as rédeas da produção dos discos da esposa, passando a bola para Hélio Delmiro neste disco. A partir do álbum seguinte, “O canto das três raças” (1976), no entanto, até seu último disco, “Nação”, lançado em 1982, foi ele quem conduziu a carreira da cantora.

Com o marido na direção, a carreira de Clara Nunes tomou um novo rumo. Assim como o disco lançado em 1971, “O canto das três raças” representou um novo marco em sua trajetória artística. A cantora provou ser uma excelente intérprete de composições dos mais diferentes gêneros - gravou modinha, capoeira, canção, marcha-rancho e samba.

Os compositores

Paulo César Pinheiro, além de produzir os discos de Clara, criou grandes clássicos que ficaram eternizados na voz da cantora. Ao lado de Mauro Duarte e João Nogueira, formou uma trinca de compositores que produziu alguns dos maiores sucessos de sua carreira. Da ponta de sua pena, foram traçados os versos dos sambas “Menino Deus”, “O canto das três raças” e “Portela na Avenida”, que trouxeram melodias de “Bolacha”, como era conhecido Mauro Duarte.

Com João Nogueira, compôs os sucessos “As Forças da Natureza”, “Guerreira”, “Banho de Manjericão” e “Minha missão”. O poeta ainda assinaria parcerias com Guinga, Eduardo Gudin, Maurício Tapajós, João de Aquino, Ivor Lancelotti, Sivuca, além da própria Clara, naquela que seria a única composição da cantora, “À flor da pele” (que tinha, também, Maurício Tapajós como coautor).

De Mauro Duarte, Clara Nunes ainda registraria outros sambas que alcançariam grande repercussão, como “Lama” e “Meu sapato já furou” (com Elton Medeiros). Já com João Nogueira, a relação também seria intensa, tendo gravado sambas do compositor desde seu primeiro disco “de samba”, de 1971 (na ocasião, registrou “Meu lema”, parceria com Gisa Nogueira, irmã do sambista, e “Morrendo de verso em verso”).

Clara Nunes travou uma grande amizade com o compositor do Méier, um “sambista de calçada”, como ele mesmo se definia. Ao seu lado, engajou-se no Clube do Samba, batalhando pela valorização do samba e dos sambistas no âmbito da cultura popular brasileira, cada vez mais ameaçada, já nos idos dos anos 70, pela indústria cultural. Clara era uma figura emblemática nesta luta, já que vendia muitos discos sem fazer concessões, era popular sem abrir mão da qualidade e do respeito às tradições musicais do país.

Outro compositor que marcou a carreira de Clara Nunes foi Candeia. Assim como João Nogueira, o sambista engajou-se na defesa da cultura afro-brasileira com a criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, que representava uma resistência ao formato francamente comercial que as escolas de samba haviam adquirido à época. Clara nutria enorme admiração pelo compositor e o tinha como grande amigo. Em seus discos, era obrigatória a presença de ao menos uma composição do sambista no repertório – com “O mar serenou” obteve enorme sucesso, em 1975.

Uma obra de valor como a de Clara se faz com discos bem trabalhados, com produções caprichosas e músicas escolhidas a dedo em meio a infindáveis ofertas de composições. Além dos compositores citados acima, de fundamental importância para sua carreira, a mineira gravou grandes nomes da música brasileira, como Ataulfo Alves, Assis Valente, Chico Buarque, Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Martinho da Vila, Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Ismael Silva, Monarco, Bide, Marçal, Paulinho da Viola, Capiba, Sivuca, Wilson Moreira, Nei Lopes, Adoniran Barbosa e Elton Medeiros, entre outros.

Os instrumentistas

Quando Clara Nunes resolveu gravar um disco de samba, Adelzon Alves convidou o Conjunto Nosso Samba para acompanhá-la nas gravações. Não poderia ser apenas um repertório repleto de “brasas”, o arranjo, a roupagem, o “molho” deveria ser de uma autêntica roda de samba - não caberia o formato bateria-baixo-piano, que algumas cantoras arriscavam ao gravar o gênero, procurando dar um arranjo mais “sofisticado”.

O casamento foi perfeito: Carlinhos tocava o cavaquinho com afinação em bandolim de maneira única e o ritmo, conduzido pelo surdo de Gordinho, trazia o balanço de Nô, Barbosa, Stênio e Genaro, fazendo uma “cozinha” categórica para Clara Nunes brilhar. A sintonia foi perfeita e os músicos acompanharam a cantora em shows e gravações até o fim de sua vida.

Outros grandes instrumentistas passaram pelos estúdios da Odeon para gravar com Clara. Dino 7 Cordas, Hélio Delmiro, Wilson das Neves, Pedro Sorongo, Zé Menezes, Alceu Maia, Nelsinho do Trombone, Copinha, Raphael Rabello, Jorginho do Pandeiro, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Luna, Elizeu, Marçal... Os nomes de peso mostram a força que a cantora tinha no meio musical brasileiro nos anos 70 - todos queriam gravar com ela.

Portelense

Bem relacionada com compositores e instrumentistas do meio do samba, Clara Nunes se aproximou da Portela. Adorava o ambiente informal, alegre, repleto de música da mais alta qualidade, que permeava os encontros da Velha Guarda. Tornar-se-ia portelense de coração, desfilando na avenida todos os anos, gravando sambas de compositores de lá e, honraria máxima que poderia receber, foi nomeada madrinha da Velha Guarda, ao lado de Paulinho da Viola, o padrinho.

Sucesso na rádio, na TV e no teatro

Para a Odeon, ter Clara Nunes em seu elenco de artistas representava a certeza do sucesso. Gravando um disco por ano, vendia centenas de milhares de exemplares a cada lançamento. Talentosa, belíssima e carismática, conquistava tudo e a todos. Aos produtores do rádio, lançava sucesso atrás de sucesso; às mulheres, ditava moda com suas roupas, penteados e acessórios; aos sambistas, apontava os nomes dos bambas do momento (e do passado), dava vida a composições esmeradas, tirando-as de baús e da lembrança de seus criadores e, assim, mantinha a força do samba junto àqueles que eternizavam tais versos e melodias em rodas espalhadas por todo o Brasil.

Não demorou a transpor fronteiras. Não bastava aos fãs ouvi-la. Todos queriam vê-la cantar. No Fantástico, passou a emplacar videoclipes de seus sucessos. Lançou o primeiro em 1974 e não parou mais, sendo presença constante na TV aos domingos, até sua morte.

Tendo conquistado a indústria fonográfica, o rádio e a televisão, faltava o teatro. E a estratégia desenvolvida por ela e Paulo César Pinheiro para atingir tal objetivo foi ousada: adquiriram um espaço e criaram o Teatro Clara Nunes, onde a cantora poderia apresentar seus espetáculos e lançar seus álbuns ao público sem atravessadores - sem empresários e produtores a impor, restringir e barganhar às custas de seu talento.

“Adeus meu sabiá, até um dia”

O Sabiá - um dos apelidos de Clara - voou alto por mais de uma década, com enorme sucesso. A partir de 1983, no entanto, esse cantar não mais se faria ouvir. Clara morreria tragicamente, no dia 2 de abril daquele ano, por conta de uma má sucedida operação para retirada de varizes, que culminou com um choque anafilático fatal.

Paulo César Pinheiro, João Nogueira e Mauro Duarte - o trio de compositores mais ligado à cantora - deixaram, como testamento, uma singela homenagem a ela em forma de samba: “Um ser de luz”. Fato é que, trinta anos após sua morte, a obra de Clara Nunes permanece viva, forte e inspiradora.

“Um dia

Um ser de luz nasceu

Numa cidade do interior

E o menino Deus lhe abençoou

De manto branco ao se batizar

Se transformou num sabiá

Dona dos versos de um trovador

E a rainha do seu lugar

Sua voz então a se espalhar

Corria chão

Cruzava o mar

Levada pelo ar

Onde chegava espantava a dor

Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia

Foi que o menino Deus chamou

E ela se foi pra cantar

Para além do luar

Onde moram as estrelas

E a gente fica a lembrar

Vendo o céu clarear

Na esperança de vê-la, sabiá

Sabiá

Que falta faz sua alegria

Sem você, meu canto agora é só

Melancolia

Canta meu sabiá,

Voa meu sabiá,

Adeus meu sabiá

Até um dia”


Texto: André Carvalho

Ilustrações: Kelvin Koubik



 
 
 

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