Madrinha Eunice
- Batucando
- 18 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 20 de jun. de 2020

No Carnaval dos cordões da Pauliceia do final dos anos 30, em que balizas, reis, rainhas e porta-estandartes se destacavam nas ruas da cidade, uma escola de samba se impôs, alterando os padrões vigentes dos desfiles de agremiações carnavalescas. Vinha da Baixada do Glicério a Sociedade Recreativa Beneficente e Esportiva do Lavapés, fundada em 1937.
Sua criação é obra de uma piracicabana, que, após conhecer o Carnaval da Praça Onze, apostou que a capital paulista também pudesse comportar - coexistindo com os predominantes cordões - escolas de samba como as que haviam no Rio. Seu nome era Deolinda Madre, mas todos a conheciam por Madrinha Eunice.
Foram muitas as inovações trazidas pela agremiação alvirrubra para o Carnaval paulistano, entre elas a introdução do casal de mestre-sala e porta-bandeira, a comissão de frente e a ala das baianas. A reverência à ancestralidade presentificada pelas baianas é grande, aliás, no Lavapés, estando gravada no próprio pavilhão da Escola - a matriarca, inclusive, desfilou a vida toda de baiana.
Vivendo no bairro negro da Liberdade desde que chegou a São Paulo, aos 11 anos, Madrinha Eunice era entusiasta das festas de largo e não perdia uma Festa de Bom Jesus de Pirapora. Filha de Ogum com Iansã, a sambista e jongueira manifestava sua fé na quimbanda, fazendo de Exu Veludo e Maria Padilha os patronos da Escola.
Criadora de enredos e sambas para diversos carnavais, ficou à frente do Lavapés até o fim da vida. Dona de quatro barracas de limão na Praça Clóvis, separava todo o rendimento que obtinha entre dezembro e fevereiro para vestir garbosamente seu “batuque”, como era chamada a bateria da Escola.
Nos anos 60, batalhou pela oficialização do desfile das escolas de samba e cordões - era a única mulher do seleto grupo conhecido como “Cardeais do Samba Paulista”. Sem dizer “amém” a ninguém, fez questão de jamais profissionalizar a Escola, mantendo a agremiação longe daqueles a quem chamava de “sambeiros”.
Em 1995, com a saúde debilitada, prenunciou aos familiares: “deste ano, eu não passo”. Em seu último dia de vida, fez aquilo que mais gostava: cantou o dia inteiro. Missão cumprida neste plano terrestre.
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A ligação do futebol com escolas de samba, blocos e cordões carnavalescos é recorrente na história do Carnaval de São Paulo. Do Vai-Vai, originário de um clube do Bixiga chamado Cai-Cai, passando por agremiações como Rosas de Ouro e Unidos do Peruche, que contavam com batuqueiros de times de várzea em seus primeiros núcleos de sambistas, até o surgimento das escolas ligadas a torcidas organizadas, o couro da bola e dos tambores sempre estiveram conectados.
No caso do Lavapés, o processo se deu de forma inversa. A “Sociedade Recreativa Beneficente”, que também conta com a designação “Esportiva” desde a fundação, em 1937, deu origem a um time de futebol, o Lavapés Futebol Clube, criado em 1942 e que era igualmente comandado por Madrinha Eunice.
Em 1981, ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo, a mandatária das agremiações da Baixada do Glicério falou sobre o fato de ser a única mulher à frente de uma escola de samba e de um time de futebol de várzea na cidade. “Eu tenho orgulho de ser mulher. E gozo de muito respeito. Graças a Deus, todos eles me respeitam tanto na escola de samba quanto no futebol”, afirmou, no depoimento à posteridade.
Sua neta Rose Marcondes, presidenta de honra do Lavapés Pirata Negro - como foi rebatizada a Escola em 2019 -, relembra que a comunidade ia de caminhão assistir aos jogos dos torneios de várzea e que era comum que o clima esquentasse durante as partidas. “Tinha muita encrenca e minha avó não aliviava, não”, conta. “Ela era boazinha, mas os cinco minutos dela eram bem confusos”, lembra, aos risos.
Em 1974, foi organizado, no estádio do Nacional Atlético Clube, na Barra Funda, o Campeonato de Futebol de Escolas de Samba, merecendo o “encardido certame” uma nota na revista Placar. Mais que os resultados dos jogos, porém, o “pescoção” dado por Madrinha Eunice em seu genro, Roberto “Galo Rouco”, vice-presidente da Escola, por conta de uma derrota para a Unidos do Peruche, chamou a atenção da reportagem. “Ele perdeu até a voz”, brincou a repórter Maria José.
“Sou uma veia endurecida, caprichosa e muito enérgica”, admitia a matriarca da agremiação alvirrubra. Respeito é pra quem tem.
Texto: André Carvalho
Ilustrações: Kelvin Koubik
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