Beth Carvalho
- Batucando
- 1 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 18 de jun. de 2020

Beth Carvalho já tinha uma carreira consolidada quando, em 1977, descobriu o samba do Cacique de Ramos, cultivado aos pés de uma sagrada tamarineira no bairro de Olaria. Garimpeira de pérolas musicais, difundiu o movimento do chamado "samba caciqueano", o tradicional pagode de fundo de quintal, lançando nomes como Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Aragão e tantos outros. Vestiu o manto e aceitou a sina de madrinha. Com letra maiúscula: a Madrinha do Samba. Antes do casamento com o bloco da Zona Norte, porém, a sambista já havia levado aos lares brasileiros a musicalidade de outras agremiações carnavalescas do Rio. Mangueirense de coração, foi uma das grandes divulgadoras da obra de sambistas portelenses. Nomes como Monarco, Chico Santana, Manacéa, Casquinha, Argemiro, Alberto Lonato, Candeia, entre vários outros, tiveram presença frequente em seus discos. Da Verde e Rosa, teve em Cartola um fornecedor constante de composições, muitas delas inéditas. Foi Nelson Cavaquinho, no entanto, a quem mais se afeiçoou, nutrindo com o bardo mangueirense uma forte amizade. Foi seu principal intérprete, com 33 sambas gravados, chegando a dedicar, em 2002, um álbum exclusivo a ele. Muitos dos sambas gravados de Nelson foram compostos com Guilherme de Brito, com quem formou uma das mais emblemáticas parcerias da história do samba. Outras duplas clássicas, contudo, também estiveram no radar de Beth: João Nogueira e Paulo César Pinheiro, Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho, Wilson Moreira e Nei Lopes, nada escapava ao seu ouvido disciplinado e atento. Outros tempos e outros redutos de samba também foram contemplados pela intérprete. Da Era do Rádio, destaque para a dupla Noel e Ismael, além do grande Heitor dos Prazeres. De fora do Rio, baianos e paulistas também foram contemplados, ganhando, inclusive, álbuns exclusivos com composições de seus sambistas. Tem destaque em sua obra, ainda, Martinho da Vila, que dentre vários sambas, presenteou Beth com uma composição biográfica. “Sempre fui enamorada do sambão/ graças a Deus, eu sei cantar pro meu povão”, escreveu o sambista, definindo, com grande precisão, a sua companheira de pagode.
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Beth Carvalho sempre fez questão de deixar claro de que lado sambava. "O samba é revolucionário, é linguagem popular”, dizia a filha do militante do PCB João Francisco Leal de Carvalho, o “João das Guerrilhas”, a quem herdou o compromisso com as lutas sociais. Brizolista ferrenha, foi grande entusiasta das candidaturas do velho caudilho gaúcho, gravando jingles e participando de comícios a favor do líder trabalhista. A Getúlio Vargas, antecessor político do pedetista, chegou a dedicar, em 1989, com João Nogueira, um álbum exclusivo (“O grande presidente”). A opção pelo samba no início dos anos 70, rejeitando o caminho da bossa nova que vinha trilhando, era encarado como um ato político. “O Brasil pegando fogo, em plena ditadura, e os caras falando do barquinho, do pato e da brisa?”, questionava. Gravar compositores negros, pobres e marginalizados, para ela, “já era uma forma de protestar”. Em 1998, chancelou seu apoio à causa da reforma agrária participando do álbum “Arte em Movimento”, produzido pelo MST, movimento que exaltou por toda a vida. Na ocasião, a cantora, habituada a gravar os grandes mestres do samba, deu voz à súplica do trabalhador sem-terra Zé Pinto (“A ordem é ninguém passar fome/ progresso é o povo feliz/ a reforma agrária é a volta do agricultor à raiz"). Apoiadora das gestões petistas em Brasília, também era entusiasta de outros governos de esquerda na América Latina - de Fidel Castro e Hugo Chávez, privou-se de carinhosas amizades. Nos últimos anos de vida, repudiou o enfraquecimento das instituições democráticas e o avanço do autoritarismo no Brasil. Cantou “Não vai ter golpe de novo/ reage, reage meu povo” (de Claudinho Guimarães) durante o processo de impeachment de Dilma, endossou o movimento #EleNão contra Bolsonaro e clamou pela liberdade de Lula. Ao ex-presidente, compôs o samba “Lula Livre”, em que dizia “O povo quer/ o povo decide/ o povo diz/ nós queremos Lula andando livre no país”. Da prisão, o petista retribuiu o carinho com uma carta em que afirmava respeitar “os compromissos ideológicos” da sambista e sua “coragem de estar sempre do lado do povo”. O reencontro entre os dois, no entanto, jamais ocorreria.
Texto: André Carvalho Ilustrações: Kelvin Koubik
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